12.5.10

59 segundos

Mulheres e homens sintonizam o mundo em frequências distintas. Ficaram elas com o corpo mais perfeito, graças a deus há quem diga, e ficaram eles com a capacidade de observar e absorver a beleza a partir de fora, graças a deus há também quem diga. Ficaram eles destinados ao pensamento e à força desde os primórdios dos tempos, reza a história, ficando a elas consignados o zelo do lar, o cuidado dos filhos e quando sobrasse tempo, o tratamento da beleza das próprias. O mundo foi assim durante muito tempo até que um dia o mundo se fartou de ser assim e ainda bem. A coisa agora anda mais ela por ela no entendimento da comparação entre homens e mulheres. Quase todas as tarefas, obrigações, direitos, deveres, profissões têm os dois sexos. A sociedade “bissexualizou-se” depressa e bem como dificilmente há quem. E até aí tudo bem! Agora… chegar ao ponto onde nas bancas dos jornais salta aos olhos (e cabelos e boca e nariz e cérebro) uma revista a dizer às mulheres que é possível mudar de vida em 59 segundos… A dizer e a espicaçar a fêmea no sentido de a fazer conjugar o verbo mudar em excesso de velocidade. Isso é entrar sem carta de condução num carro sem travões nem direcção assistida. Diz um homem, incapaz de mudar de cuecas em menos de um minuto

1986

Lembro-me de ter os cabelos compridos com cheiro a fumo de cigarros. Lembro-me que era de manhã e estava frio, muito frio, frio ao ponto de ver na respiração o estilo dos fumadores. O meu pai e eu caminhavamos com a pressa dos que não querem mesmo mesmo chegar atrasados. O tabaco dele vinha sempre à baila nas conversas quando alguma senhora se chegava para me dar um beijo e dava mas dizia ó rapaz até parece que também fumas. E fumava, expelindo o ar quente dos pulmões entusiasmados em direcção à brisa gelada, afinal era um miúdo a quem o pai tinha levado para o acompanhar a um comício de uma campanha eleitoral. Neste primeiro ou segundo sábado de 1986, o rapaz de onze anos tinha a certeza de ser um homem informado, ciente das escolhas sociais adequadas à política que estava a fazer falta ao país. Um homem de sobretudo no palco pegou no microfone para chamar o Diogo Freitas do Amaral. Nesse dia vi pela primeira vez o antigo líder do CDS.
Uns meses mais tarde, no dia em que fiz 12 anos, a 9 de março, o Mário Soares tomou posse como Presidente da República, depois de ter vencido as terceiras eleições presidenciais desde o 25 de abril de 1974. Nesse dia atribuí parcialmente a derrota do Freitas ao facto de eu, e de tantos outros como eu na minha escola, não termos à data idade suficiente para votar. O melhor daquela manhã na praceta 25 de Abril, em Vila Nova de Gaia, foi ter passado o tempo todo de mão dada com o pai. Já nem me lembro da úlima vez em que o fiz.
E também não me lembro da última vez em que estive nas proximidades do Diogo Freitas do Amaral. Vou estar com ele esta noite. Gostava que no comício de 1986 ele nos tivesse dito que um dia ia ser ministro do negócios estrangeiros pelo PS. Depois o tabaco faz mal à saúde.

A sanfona não é um banco

A avenida da Boavista, nos dias bons, tem momentos iguais aos números de magia. Ela consegue ser aquele truque dos intermináveis lenços puxados pelo ilusionista. Aquilo nunca mais acaba. E isto também não, a capacidade de repetir os dias, repetindo rotinas às centenas de milhares, havendo em todos dias instantes que nunca tinham sido “publicados” antes.
Hoje andava um cão branco com um cesto pequenino na boca. Os dentes seguravam o arame. O cão estava sentado ao ombro de um homem moreno, extraordinariamente novo para aquele papel e invulgarmente baixo para quem já tem mais de 20 anos. O tacanho torso do pedinte não cumpria por ali a missão. Tinha na posição de uma mochila colocada à frente uma sanfona onde faltavam teclas. Os dedos dividiam tarefas entre a construção de um ruído pobre e o botão do semáforo que é como um requirimento para pedir verde para os peões e vermelho a travar as rodas do trânsito. O homem da sanfona nunca pedia dinheiro a quem passa a pé junto a três hotéis de cinco estrelas. Olhava na direcção dos carros como quem via mealheiros ambulantes. E batia nos vidros com o queixo. Tocava na sanfona com as mãos e ajudava ao balanço com um joelho. O cão esticava o focinho na mesma esperança dos pescadores quando a rede vai ao mar. Chamar um ilusionista era capaz de ser mais bem escolhido, se para ali estão com a ideia de ver moedas no ardil.

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...