20.2.10

O meu primeiro porno

A gravidez de Álvaro

Álvaro está sentado. Vem na fila da frente, no lugar encostado ao vidro, onde a linha do horizonte é cortada pelo ombro do motorista, pelo pescoço e pela cabeça deste. O cabelo rapado exibe a orelha esquerda, mesmo por cima do azul escuro do casaco e do azul claro da camisa. A orelha mora muito longe da face, apercebe-se Álvaro, enquanto se perde na dúvida residual sobre se o que está em causa aqui não será antes o cabelo demasiado curto. Sem paciência para acertos estupidificantes de raciocínio, Álvaro vai ao bolso de dentro do sobretudo. Do lado onde o coração bate com um aperto doloroso, Álvaro retira o Ipod com a mão direita. Segura-o com a esquerda, apoiada nos joelhos. Faz deslizar os dedos da outra mão na superfície de vidro. A meio de uma viagem de autocarro entre o Porto a zonas mais a sul de Vila Nova de Gaia, a tecnologia abre-lhe um mundo novo na palma da mão. Um mundo virtual bem mais interessante do que o respirar de todas a vidas anónimas daquela camioneta de carreira, importada de leste na véspera do dia em que devia ter sido encolhida, primeiro, e empilhada, depois, num cemitério de chapa erguido até ao sítio onde dizem haver a fronteira do céu.
O toque dos dedos no vidro do Ipod, conduzem Álvaro até uma janela imaginária, de onde espreita para um lugar distante, e onde se vê numa licra bege apertada, sobre patins brancos com lâminas, numa pista de gelo, durante o solo de um concurso de dança. Álvaro é um homem que gosta de homens, mas que por causa dos homens já sofreu mais do que qualquer mulher dos livros dos autores nos dois séculos imediatamente anteriores a este.
Álvaro quer engravidar a todo o custo. Decidiu isso ao fim da tarde. O fim da tarde foi há um quarto de hora, quando os minutos de espera pelo autocarro lhe mordiam os pensamentos, não muito longe da paragem na Praça da Batalha. Abrilhantado de espírito pela ideia de última hora, Álvaro estava de plena consciência à beira de ter conseguido a fórmula secreta para manter o Ricardo para sempre naquela relação que estava doente mas que não seria nunca doentia, no entender do próprio.
Ia engravidar. E ponto final. Nada nem ninguém o poderiam convencer do contrário. Não havia volta a dar. Nunca, em toda a vida, tinha passado por um estado de convicção semelhante. Pegou no Ipod e iniciou a navegação por entre milhares de aplicações. No espaço destinado a se escrever o objecto da procura, Álvaro escreveu o que queria. Ia fazer o download de um útero. Mas não o ia fazer já. Esperaria pelo momento em que estivesse em casa e faria tudo como tinha de ser, na presença do Ricardo.
Sentado num banco de cozinha, a olhar para uma revista de mulheres nuas, Ricardo dizia-se apenas interessado no corte dos fatos de banho e dos biquinis. Ricardo disse-lhe também para aproveitar e fazer o download de uma vagina, porque pelo cú, eram capazes de não lá ir.

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