16.3.11

A língua portuguesa sabe muito mal...

A ter de dizer o que aconteceu vou-me sentar, dizer, ter dito.


O dia 31 de janeiro por algum motivo estava a teimar em não sair do calendário. A tarde, nos meus olhos tinha ficado presa num monitor de um computador, e em volta, se alguma coisa existia, se alguém havia, não vi, não sei de nada disso.
Um competição anunciada no mês de novembro escrevia a pedir candidatos interessados na publicação de um pequeno conto, compreendido em escassas dezenas de páginas. Era o desafio ideal para contar a história do guarda-chuva do Papa Bento XVI. Em vez de trazer a história ao concurso, deixei-a ficar fechada com o guarda-chuva, pendurada para melhor ocasião, como ele também está, num canto de azulejos brancos da lavandaria em minha casa.
Esqueci, esqueci depressa o guarda-chuva do Papa, tão depressa como me tinha lembrado dele. Não escrevi com o guarda-chuva, antes me abriguei do inverno com ele. Foi nesses dias que me caiu em cima uma chuva de palavras e eu me atirei com elas ao cofre em que se transforma um documento em formato digital. As horas correram maratonas, as palavras fizeram cem metros, respiraram fundo e voltaram a fazer cem metros barreiras. Aos poucos, as frases começaram a produzir campeões do mundo. Eu tinha três meses pela frente e já estava muito perto do número mínimo de páginas exigido pela organização do concurso de talentos da Fnac. Deixei acabar novembro e deixei começar dezembro, deixei acabar um ano e deixei começar o outro. Decidi por fim deixar o documento fora do concurso.

O dia 31 de janeiro por algum motivo estava a teimar em não sair do calendário. Só que o teimoso não era o calendário, era eu. O concurso terminava à meia-noite. De mãos vazias voltei as costas ao ecrã do computador. De mãos vazias meti as mãos do bolsos e de mãos vazias fui ao bolso do casaco à procura de trinta cêntimos para tirar um café. Que se foda! De mãos vazias regressei à mesma secretária de onde tinha saído à bocadinho de mãos vazias e de mãos vazias enchi o peito de ar e mergulhei de cabeça em todas as páginas da internet onde tinha escrito qualquer coisa ao longo do anos.
Quando vim à tona trazia na mão um punhado de textos. Respirei fundo. Colei, apaguei, voltei a colar. Diminuí, acrescentei. Fiz um jornal inteiro a uma hora da hora do fecho. Fiz tudo em cima do joelho (acto bravo para quem tinha acabado de recuperar de uma rótula partida). Aquilo era o resultado de um abrir e fechar de olhos. Era a história cruzada de segundos das vidas de homens e de mulheres. Mas aquilo não era um conto. Escrevi em francês isto não é um conto, citando Diderot, logo a seguir ao título. O título era "O movimento rápido dos olhos", uma alusão às perturbações do sono. O dedo indicador direito levou o rato até sítio onde estava escrito enviar. Eu levei o corpo até onde estava escrito dormir.

Esta noite foram anunciados os 10 melhores contos do concurso de novos talentos da Fnac. Perdi. Obrigado aos quatro elementos do júri por me terem feito ficar do lado de fora desta espécie de festival da canção, mas em escrito. Eu que afinal já me tinha auto-excluído, ao não apresentar um conto. Esse nasceu quando tinha de nascer, mas não era para aquilo. Está a aprender com o tempo e um dia, quando for grande, quer ser um livro.
Quanto ao concorrente "O movimento rápido do olhos"... não entra na cabeça dele a ideia de haver 10 melhores. Nestas alturas, a língua portuguesa sabe muito mal...

Perdi. Não farei luto. Não deixarei de lutar.

4 comentários:

Sophie disse...

eu sou super fã

MARINHO NEVES disse...

a literatura assim como toda a arte, é muito difícil de entender: o que é muito bom para nós, para alguns não presta, para outros é assim assim e há ainda os que se julgam entendidos e navegam conforme a tempestade ou a bonança. Mas, para mim, a arte é como um bom vinho: a sua degostação depende muito do momento em que se bebe, uma vezes é divino outras sabe mal. O que mais interessa é escolhermos o momento para o bebermos

Maria Helena P.A.Guedes Carriço disse...

Desistir é que nunca!!!! Há para aí tanta gente a escrever mal que seria um desperdício perder-se quem sabe utilizar tão bem a nossa Língua. Parabéns, passarei a ser seguidora desses escritos e espero que um dia dêm frutos.

António Reis disse...

Obrigado professora :) Beijinhos

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...