15.3.11

Takci

Estamos em Moscovo há vinte minutos e já estamos pelos cabelos. Não são cabelos, são fardas,  os cabelos, de cabeça em cabeça, iguais, nos homens, penteados para a frente. Uma linha de montagem não os faria parecer melhor repetidos. Aos alfandegários, aos polícias, ao homem, ao rapaz, a todos, sem excepção. O aeroporto repete-se um metro a seguir outro, passo a passo, se estamos a contar o lado masculino de tudo aquilo que nos vai aparecendo à frente do carrinho das malas. Estes três  podiam ser aqueles seis polícias lá do fundo - e vão ser quando lá chegarmos - matrioshkas com pistola à cinta, cinto atravessado na diagonal sobre a camisa, de cabeça funda no chapéu militar de inverno, com a pala de cima em plena erecção matinal e pala de baixo murcha, e eles por baixo das palas, que nem burros, eles, ali à procura da melhor forma de tirarem o dinheiro das carteiras de quem chega sem dizer mãos ao ar isto um assalto nem chegarem ao ponto da subtileza visual e táctil dos carteiristas. Ficam neste intervalo. Quedamo-nos em sossego a ver o que tem de vir com o resto do filme. Escolhemos ficar sentados.

Sentado é uma profissão muito concorrida em Moscovo. Sentado é trabalho para mulher e é trabalho para homem. É trabalho para alto, magro, baixo, gordo, velho, novo. Sentado é um lugar à espera de vaga e é os lugares todos ocupados. Sentado é a velhota que se levanta da guarita de vidro no metro e nos abre a cancela aos oito para que possamos passar sem pagar. Sentado é também a gorda sem fobias, na casota de vidro do tamanho dela, casota que a enlata numa forma rectangular transparente. A gorda que nos vê os pés ao fundo dos degraus, a sair da descida rolante.
Sentado é poiso estático, mas sentado também é sobre rodas. É este carro nos dois lugares da frente, é estes bancos com dois milícias pousados, sonolentos, em frente ao ministério. Estes dois, numa situação de emergência, ainda vão ter de estudar a melhor forma de emergir dos outros trinta e sete carros entre o carro deles e a estrada, sem caminho formado pelos restantes estacionados. Sentado é posto da velhota, dona de uma das cinco sanitas portáteis, forradas a plástico verde nas quatro paredes e a preto no tecto. Este posto sentado é digno de uma porta aberta pela conjugação de uma corda amarrada desde o trinco da porta até ao poste mais próximo. Escancarada, a velha sentou-se na figura de colectora de moedas a troco de uma chave com acesso garantido a um buraco onde se pode enfiar à pressa o que se quer deitar fora.
Neste ofício do estar sentado, o lugar no topo da hierarquia é o lugar à frente dos volantes do carros mais apetrechados em termos de cilindrada. A gasolina ao preço de sessenta cêntimos por litro aquece quase sem custos o interior do carro onde o profissional dos profissionais da arte de estar sentado espera, sentado, pelo dono do carro, e por inclusão de partes, dono indivíduo sentado e dormitante ao lado do lugar do morto.

E agora vem o resto do filme no aeroporto: a polícia deixou-nos sair com o material de trabalho e nem sequer chegou a insinuar qualquer manobra de diversão tendo em vista o conteúdo dos nossos portugueses bolsos. Foi com certeza por termos ficado respeitosamente sentadinhos. Tão bem sentados que nos tomaram por russos. Baixaram as guardas da alfândega, entramos em Moscovo. À saída, uma confusão de homens em pé agarrava cartolinas das mais diversas cores, mas com uma única palavra: takci. São a vergonha da profissão sentada. Em bicos de pé, à procura de trabalho.

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