15.3.11
A história de Genk
A história de uma imagem fala de uma fotografia a cores. O autor da imagem é anónimo, pese embora a memória vasculhada permita dizer que o autor é uma mulher. Muito provavelmente uma mulher solteira, de vinte e poucos anos, seguramente holandesa, loira com igual certeza e alta. Alta e feia, não restem dúvidas quanto a descrição tosca de um rosto bom para ficar atrás de uma câmara. Não foi por isso que o fizemos, mas acabamos por o fazer. Entre um e outro e outro e outro copo nesta mesa, e outro, pedimos à rapariga da mesa do lado para segurar a máquina fotográfica, apontar, na nossa direcção, sendo que nós éramos três. Pedimos para levantar o indicador da mão direita e pedimos para carregar. Na imagem, por baixo dos sorrisos, havia uma carteira com cento e cinquenta euros, com cartões, com documentos de identidade, enfim, aquilo a que se convencionou designar por uma vida inteira. Num segundo, a carteira sobre a mesa da fotografia, já não estava sobre a mesa do bar. No mesmo segundo, a desconhecida autora da imagem tinha seguido o caminho do anonimato absoluto. Ficou um português sem identificação em Tegelen, Venlo, Holanda, a vinte e quatro horas de regressar a Portugal, sendo que no espaço desse dia tinha de dar um salto á Bèlgica por causa de um jogo de futebol. Abreviando foi assim: foi seguir do bar para a esquadra da polícia, da esquadra da polícia para o sala do pequeno almoço do hotel, da sala do pequeno almoço do hotel para o carro, e uma vez no carro foi seguir viagem de Tegelen para Roterdão.A distância? Cento e setenta e sete quilómetros. No porto de Roterdão, no porão de um barco ancorado onde funcionava uma loja de artigos de pesca, entre linhas, anzóis, canas, redes, gorros e impermeáveis, havia um sistema antigo de fotos à là minute e havia um secador. Saí de lá com menos nove euros, mas com mais quatro fotografias. O funcionário do consulado português tinha ficado à espera de um português, este, eu. Eu nesse dia fiiquei de repente a saber que estava mais gordo ou era impressão minha. Saí de Roterdão com um documento verde, onde foi colada uma fotografia anafada de mim, que me permitiria voar desde Dusseldorf até ao Porto. Não sem antes porém… haver estrada e asfalto, do mal o menos, ao longo de cento e noventa e nove quilómetros, terminando a contagem no parque de estacionamento do estádio de futebol do Genk. Os jogadores subiam ao relvado para o aquecimento. Eu mandei embora o frio na barriga com dois cachorros comprados e comidos numa roullote mais limpa do que muitas casas portuguesas, cobertos por uma cebolada da cor de mármore acabado de lavar. As tais roullotesestão aqui no mesmo sítio, de novo horas antes de um Genk - FC Porto, três anos mais tarde. Poderia perder linhas a desenvolver o conceito segundo o qual há coisas que nunca mudam. É preferível não o fazer. Antes, no aeroporto do Porto, neste dia do regresso a Genk o taxista já ia embora quando reparou em qualquer coisa esquecida no banco de trás. Qualquer coisa era uma carteira. A minha. Esta chegou a Genk para contar a história.
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