4.3.10

Chinelos azuis

Para fazer aquela mancha no pilar da ponte, Leonardo Da Vinci teria estado ali uns meros cinco minutos. Teria um pincel grosso para encher o miolo com a brevidade toda, e teria um pincel mais fino para contornar o desenho com o requisito mínimo a que uma obra de um mestre obriga. No caso de ali ter estado a ser o autor da daquela Mona Lisa, Leonardo tinha de ter estado de costas para Vila Nova de Gaia o tempo todo. E teria tido o azar de, apesar de ter estado o tempo todo de frente para o Porto, teria tido o azar de não ter visto a cidade a partir do melhor ângulo. Longe disso. Tinha visto o Porto desde a Arrábida, estendido pelo rio, revelado numas curvas e infelizmente escondido noutras, por sinal as mais repletas de gente habitante e de casas de época mercadoras, por sinal as mais belas das curvas, que nas vontades naturais do Douro se escondiam do olhar de Leonardo. 
Da Vinci teria pintado aquela Mona Lisa no tempo de ler o parágrafo anterior. Aquela mancha preta enferma serviria para dizer: estive aqui muito depressa se um dia eu cá tivesse estado. Obviamente que Da Vinci nunca ali esteve antes da metade do tabuleiro da ponte da Arrábida. Outro dado para lá de qualquer eventual suspeita é o facto de num dos pilares acinzentados da ponte existir uma Mona Lisa pintada a spray sobre um cartão estilizado com a figura da senhora. Obra e graça do anonimato. De forma singular ou plural. Como tiver sido. Sendo certa a presença de uma senhora de sorriso triste, todos os dias, no meu caminho para o emprego, às portas da cidade do Porto.
Valha-me o sorriso feliz de uma mulher na hora do regresso a casa. Hoje já foi dormir porque regresso de madrugada. E ao regressar tenho um folha em cima do balcão da cozinha. A folha tem um sorriso desenhado a traço feminino, por baixo de uma frase onde diz: "para te manter confortável nas tuas noites de escrita". Abro o saco de papel e tiro a surpresa. Venho para este sofá com a ideia de escrever qualquer coisa acerca do Leonardo Da Vinci. Caminho sobre os dedos dos pés, muito confortável nestes chinelos azuis de veludo. Não quero fazer barulho.

2 comentários:

Patrícia Lopes disse...

Compadre, a tua escrita delicia-me...não me canso de ler o que escreves :) Em relação à tua "história" de hoje, sei do que falas. Lindoooooooooo! É de pequenos gestos de ambos que o vosso amor se alimenta!

Beijinhos

O Faroleiro disse...

Meu amigo, a receita é simples:

- De costas para Gaia o Mestre pintou a obra prima.

- De frente por certo teria pintado a prima do mestre d'obras !

És mesmo mauzinho...

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...