4.12.09

Enquanto dormes

Numa luz escura, para o interior de uma porta, de costas para a janela, por baixo do candeeiro. Ali. De costas para quem espreita de fora, o vulto de um homem segura qualquer coisa onde escreve as coisas mais difíceis de dizer no momento mais difícil de escrever. Começou a carta com um banal "enquanto dormes", para logo apagar essa ideia que dava a ideia de estar a colocar a remetente perante um título roubado à pressa da prateira de uma loja de conveniência, para desenrascar uma situação complicada. "Enquanto dormes" não seria, portanto, a linha de abertura da carta destinada à mulher da vida do senhor que segura a pena. A delicadeza do caso aconselha a desambiguar a palavra pena. Pena era a caneta mais antiga lá de casa, a que estava mais à mão quando se foi lembrar, à tardinha, de falar por escrito com ela. Pena era um sentimento para riscar do dicionário sentimental, mas era também o estado de espírito de um homem triste por ter escrito pela última vez há mais de um ano, e por, quando o fez, o ter feito para pôr o nome num cheque. Impagável, aquele momento de contrição absurda.
O caminho não era aquele. E por aquele caminho a carta não chegaria nunca aos olhos da destinatária. Estava sem dar conta a seguir todas as indicações que levavam a detalhes. A rua para onde tinha de escrever não era por ali. Nem de longe, nem de perto. Voltou agarrar a pena na mão direita e foi direito ao assunto. Disse tudo num fôlego e a prova está no papel dobrado em três, com mil cuidados.
O envelope está fechado quando uma funcionária dos correios o pousa no chão cinzento da balança. 78 gramas. Bem pesadas, e bem vistas as coisas a frio - como a temperatura do chão da balança - as palavras que lhe pesavam toneladas e por isso custavam a sair, não eram assim tão carregadas quanto isso. Mais do que uma teoria, a relatividade é um conceito prático.
No caminho de regresso a casa, releu todas a frases com a mente focada no príncio que era para ser "enquanto dormes" mas que não foi. Mas que contava tudo sobre a forma dos olhos dela nas diferentes partes do sono. Estendidos nas noites de paz. Enrugados se havia tempestade no sonho. E a boca, aberta ou fechada não importa, a boca era sempre dona e senhora, única dos seus beijos, a boca era, a dormir, o lado meigo dos sorrisos serenos. O cabelo dela assistia a todos estes movimentos de olhos bem abertos e dançava da almofada para os lençois. Os braços abraçam e as pernas caminham enquanto dormes. E a voz que vem de perto para dizer que te ama, vem desta boca que te dá um beijo e tem uma letra igual à letra da carta que está para chegar.

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