4.12.09

O coleccionador de títulos

Fica na rua alta empedrada. No cruzamento dessa com a mais estreita de todas as ruas da freguesia. Isso, à partida, faz deste espaço uma coisa torta, se é que a geometria do volume dos espaços permite esta definição. Num corpo entortado, no lugar para abrir dia sim dia sim, entre o pôr e o nascer do sol. Onde as pessoas são lavadas com álcool por dentro. Cá estamos. E daqui contamos.
No sitío do balcão de onde espreitam as torneiras de cerveja, o título a duas linhas, recortado de um jornal, aproxima uma de outra, as torneiras, e acredito que as deixa de sobreaviso quando diz: "contagiar os outros dá prisão caso haja esse propósito".
A propósito, ou sem propósito, cá se prova uma verdade das artes. A escultura é obra do acaso. E por acaso, agora que o dizemos, nunca antes ninguém teria dito como iria ficar bem, encostada à parede do lado esquerdo do balcão, uma mesa de trabalhos manuais de uma escola de Valadares. Não foi, mas parece que foi desenhada primeiro, e gasta depois, para estar num estado perfeito de integração quando chegasse o bar. Da mesma escola, alguém trouxe uma banca de carpinteiro com um torno. Foi música para os ouvidos do DJ. Tem sobre ela os pratos. Dentro dela os discos. E com ela as noites dançam.
Quem escolhe, quem põe, quem muda, quem dita o som do som é o homem quem entregamos o título desta história, o coleccionador do títulos. Esse, o tal que toma café, de jornal sobre a mesa e tesoura na mão. Recorta nesgas ou pedaços das vésperas. E cola as frases, boas ou más, nas paredes do lugar onde as pessoas vão à noite para lavar o corpo por dentro com bebidas para maiores de 16 anos. Agora que falamos em idade, vamos olhar de perto para uma pedra. Uma pequena pedra, exposta na banca grande de madeira, em cima de um pano escuro. Por cima dela, na parede de ferro, o título é: "uma pedra vencedora". O coleccionador acreditou ter ganho a noite com a ideia e bendisse a hora em que à hora do café lhe apareceu uma associação daquelas. Com a tesoura à mão, cortou o bem pela raiz.
Quando me aproximo para pagar a despesa, a caixa registadora guarda, de frente para os clientes, a colagem onde se pode ler: "repare no que sofremos".
Reparo que já é tarde e que hoje vou embora sem pôr a vista em cima do dono da casa. Olhando a direita vejo um título como se fosse um quadro: "já pensaram que eu tinha morrido", está lá, desta forma, na parede.
É junto à porta, à saída, que encontro esta noite pela primeira vez o coleccionador de títulos. Nem parece o mesmo quando não traz vestida a t-shirt onde mandou escrever local hero. Antes de chegar a ele passei pela colagem junto ao torno onde a música acontece e a colagem perguntava: "quando está de folga o DJ também dorme?" Talvez sim, talvez não. Aguardemos com expectativa pelas notícias do próximo pôr do sol.

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