27.12.09

O meu primeiro porno

Prólogo
Quando eu morrer, não chores por mim. Posso estar a divertir-me.
Sem mais uma palavra, um ponto, ou uma vírgula, pousou o telefone no telefone. Perdeu a conta aos minutos a seguir a esta parte do dia. Ao longo de todos estes anos nunca precisou de um papel ou de uma caneta para saber todos os tempos e pessoas do verbo perder.
Quando a última frase foi dita, sobre ele se poderá dizer que, para cadáver, não tinha mau aspecto. As três rugas do lado externo da órbita direita mantinham-se mais fundas do que as três rugas do lado externo da órbita esquerda. Isso era visível a olho nú. E como tal, inquestionável.
A barba era demasiado nova para morrer daquela forma. Tinha seis dias junto ao queixo e por cima do lábio superior. E era dois dias mais nova na zona onde o maxilar se prolonga até ao pescoço e nas bochechas. Bochechas côncavas, encostadíssimas aos dentes pela parte de dentro da boca. Daquela boca tinha saído a sentença de pena de morte. Porquê? Por causa de um homem farto de ser homem dentro do parâmetros estabelecidos por lei. Esse homem nú com ossos à vista nos ombros, nos cotovelos, nos joelhos e nos tornozelos. Esse homem de nádegas alvas e pénis escurecido pela cor da mistura da quantidade de mulheres que por ele foram passando. Esse homem, de pé em frente ao fim. Esse que só se apercebe que afinal está vivo porque esteve tão perto de si próprio ao espelho. O vidro embaciado começou por tapar o rosto. Quando o rosto já não via o rosto, o rosto olhou para baixo e quando o fez viu os dedos dos pés sairem de perto dos dedos dos pés, viu os calcanhares ficarem perto dos calcanhares e por fim os calcanhares a caminho de desaparecerem do espelho. A morte não devia ser bem bem aquilo, pé ante pé, no chão gelado da casa de banho da mulher com quem tinha dormido ontem e a quem esperava ser apresentado hoje.

2 comentários:

Márcia Gigante disse...

A primeira frase diz tudo! Confesso-me derretida com os textos...

António Reis disse...

O senhor du cahier noir agradece a gentileza.

Bob Dylan

Aquele bendito instrumento musical, a máquina de escrever, e os seus botões de onanizar tímpanos, as teclas, corpos fora do corpo,...