3.12.09

O desconhecido profundo

Quando decidiu sair, fez o caminho até à porta em silêncio. Ia bravo por dentro, vermelho por fora, brusco nos passos. A saída apressada de quem vai cego de olhos abertos é sempre uma forma infeliz de virar as costas aos problemas. E uma situação complicada não fica para trás com o estalar do dedo médio no polegar.
Um homem, de cinquenta e cinco anos, quando decidiu abandonar um momento difícil de supetão, guardou o problema numa mochila invisível, que lhe faz pesar a nuca e todos, mas todos mesmo, já se aperceberam que aquele queixo sempre levantado não é confiança, mas retracção. E retracção é medo.
Quando decidiu sair com a discrição dos cobardes, e escolheu ir assim sem nada, estava à espera de escapar incógnito, deixando em casa o peso do passado. Mas ao ir assim sem nada, foi às escuras sem a pasta onde guardava as letras todas do abecedário. Pouco tardou e não sabia sequer o próprio nome. A memória ainda o levou à estação do comboio, mas no guichet quando quis pedir um bilhete, já não o soube fazer e ficou a olhar para o empregado como quem nunca não soubera o que era um diálogo. Sem palavras para a troca, também não soube responder aos nomes todos que todos os homens e todas as mulheres da fila começaram a dizer. Não eram coisas simpáticas, o que por esta altura ele também não sabia. E apesar disso também não seriam coisas tristes ou negativas, porque isso, para ele, representava de igual forma o desconhecido profundo.
Resistiu duas semanas à amnésia das palavras. Sem pão, nem água. Sem amor, um sorriso ou uma lágrima. Morreu. Quando morreu já não era homem. E um homem sem palavra, não chega a ser sequer um animal.

(passem para cá um euro)

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