Era homem para não me perdoar se deixasse a minha memória esquecer-se dele. Vi-o hoje pela primeira vez quando a noite já ia há muito de breu e o Coura mandou a água para cima da terra por ordem superior de uma barragem situada mais acima no rio. As hierarquias são assim. E os caudais aguentam as ordens de montante até ao dia em que engrossam de vez e avançam desenfreados para além dos habituais trilhos. Como hoje. No lugar onde a rua não servia o próprio propósito, a proposíto de um lençol de água, de um lençol não, de dois o três edredons de água sobre o empedrado, numa distância de uns bons duzentos metros.
Aqui parámos o carro. Aqui decidimos seguir em frente. O faróis eram pequenas lanternas lançadas à negritude do caminho. Aqui decidimos seguir pelo meio, porque pelo meio não devia haver rio, e à esquerda ou há direita talvez houvesse. Os pneus nunca deixaram de sentir o chão. Lá fomos.
Na marca onde a água acaba, está um homem sorridente, com óculos baços. Tem altura de um português de 68 anos. Sorriu pela segunda vez quando abrandámos, com as mãos nos bolsos e um ligeiro guinar frontal, como quem quer meter conversa: "vocês são os segundos a passar aqui", disse, no tom exclamado de quem dá as boas vindas com uma vénia aos forasteiros aventurados, bem aventurados neste caso.
A scooter branca do Fernando já foi da filha psicóloga quando ela andava a estudar em Viana do Castelo. Por trás do avental do motociclo, Fernando transporta dois garrafões de vinho tinto. A mota anda com ele porque a filha já não precisa. Está bem na vida, tem 33 anos e não quer homem. Só por ser solteira "já foi a Londres, a Paris à dislei, à Índia, à Turquia, aos Estados Unidos, ao Brasil, ao Brasil não quer ir mais porque não gostou daquilo lá". A filha está a morar em Lisboa com a mãe e com o irmão. O Fernando veio de lá ontem. Tem casa em Belém, "no melhor sítio de Lisboa, onde toda a gente quer ter", mas o norte do coração deste homem está cravado no minho, em Vilar de Mouros.
O Fernando está meio espantado por nos ver ali. Porquê? Os novecentos habitantes de Vilar de Mouros já sabem tudo sobre a chuva no inverno e sabem dar graças a deus quando a chuva traz as cheias, para lavar o rio e deixar os restos do rio fertilizarem a terra.
A conversa com o Fernando está quase a terminar. Ele aponta lá para longe na água. "Eu ajudei a trazer o Elton John e a Amália Rodrigues para cantar ali". A luz dos médios de um carro aponta para lá e hoje esse passado está submerso.
Em Vilar Mouros, de qualquer um dos lados da ponte romana, ninguém precisa dos avisos provenientes da capital do império para saber que o que sobe, desce, o que molha, seca e o que começa, acaba.
PS: enquanto isto, a família do Fernando vendia cachecóis do Benfica à porta do estádio da Luz. A filha psicóloga foi uma vez de propósito à Polónia só para ver a campa do antigo Papa. Esqueci-me de lhe dizer que o Wojtyla chegou a ser guarda-redes quando era novo.
3 comentários:
Em verdade te digo que ao fazer um périplo em terras de réis Suevos por alturas da monção sem levar jipe, Chaimite ou tractor agrícola é sempre um risco !
Digo-te também que a pureza do Sr. Fernando e dessas gentes que por esses horizontes habitam já merecia uma pá daquelas que assinalam o património da humanidade por esse mundo fora; com tradução em Inglês e tudo !
Deliciosa a escrita por detrás de um directo televisivo ;)
;)
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